Retrofit avança no Centro do Rio, mas boa parte dos imóveis é para temporada

em O Globo, 6/julho

Região concentra 79% da área total de edifícios que estão sendo remodelados no Rio, de acordo com levantamento de consultoria.

Criados para combater o esvaziamento da região central, os incentivos da Prefeitura do Rio para a reconversão de prédios comerciais em unidades de moradia têm concentrado no Centro 79% da área total de retrofits da cidade e levado ao mercado as novas unidades de prédios históricos reformulados. Ao todo, mais de 450 mil metros quadrados de imóveis antigos já passaram por esse tipo de intervenção na capital fluminense, segundo dados da consultoria Newmark.

Nem sempre, porém, essas unidades cumprem o papel de repovoar o Centro: imóveis são colocados no mercado já pensados no aluguel de curta temporada.

Entre os edifícios convertidos na região do Centro estão prédios históricos como o do antigo Hotel São Francisco, que deu lugar ao residencial Casa Mauá, com apartamentos de 16 a 42 metros quadrados, e o Passeio 56: construído no icônico endereço da antiga loja de departamentos Mesbla, o empreendimento terá estúdios de até 55 metros quadrados. No Porto Maravilha, a conversão do Sal Rio Residencial marca o primeiro retrofit habitacional da região, com 192 unidades compactas vizinhas à Pedra do Sal.

Nos últimos quatro anos, o modelo de retrofit ganhou impulso com os incentivos do programa Reviver Centro, que oferece isenção de IPTU, redução de ITBI e flexibilização de uso para estimular projetos. Desde então, 53 empreendimentos receberam licença, somando mais de 4.300 unidades — apenas 60 não são residenciais —, segundo dados da prefeitura. Ao todo, são nove novos prédios e 44 retrofitados. Outros 17 pedidos estão em análise, o que pode elevar para 5,7 mil o número de unidades.

Contraste com São Paulo

O movimento tem contribuído para reduzir o número de espaços vazios comerciais na região central. Com um estoque de cerca de 9 milhões de metros quadrados de escritórios — sendo quase 4 milhões concentrados entre o Centro e o Porto Maravilha —, o Rio chegou a registrar mais de 40% de vacância no mercado corporativo. Hoje, o índice caiu para 27%, com a retirada gradual de imóveis do mercado e à medida que prédios são adaptados, segundo análise da consultoria Newmark.

O avanço contrasta com a onda de retrofit que tomou São Paulo. Na capital paulista, parte expressiva da renovação foi voltada para a modernização de edifícios corporativos em áreas como a Avenida Paulista e a Marginal Pinheiros. A estratégia no Rio voltada para habitação tem relação com a dificuldade em reocupar os escritórios vazios e mira levar mais pessoas para o Centro, explica Mariana Hanania, líder de Pesquisa e Inteligência de Mercado da Newmark:

— A vacância ainda é alta, e a demanda por ocupação corporativa no Centro do Rio é limitada. Por isso, muitos imóveis estão sendo retirados do mercado e reconvertidos para habitação — diz Mariana, que avalia que o processo poderia ser impulsionado com empreendimentos de uso misto, que têm unidades residenciais e comerciais.

Para defensores do modelo, o avanço do retrofit tem sido uma oportunidade de repovoar o Centro e atrair investimentos para a área. Mas há críticas sobre o desvio da proposta original dos incentivos. Uma delas é o fato de as unidades estarem sendo direcionadas para exploração comercial com turismo e aluguel de curta temporada, muitas vezes em estruturas que não garantem condições para residências de longo prazo.

Laisa Stroher, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, questiona a lógica de projetos que priorizam o investimento imobiliário, em vez de garantir moradia. Laisa destaca que o risco é produzir uma “fachada de revitalização” sem enfrentar os problemas sociais e urbanos da região.

— O Casa Mauá é emblemático, porque eles sequer mudaram as janelas, que são aquelas pequenas e feitas para uso de ar condicionado do hotel — cita ela, que é pesquisadora do Laboratório de Direito e Urbanismo (Ladu). — Com isso, a ideia de repovoar fica muito distante. Muitos projetos já nascem com um modelo de negócio voltado para aluguel de curta temporada.

Incentivos questionados

Outro caso simbólico é o do edifício A Noite, na Praça Mauá, construído em 1929 e considerado o primeiro arranha-céu da América Latina. O prédio será adaptado para abrigar estúdios residenciais de locação, com projeto feito pela Brookfield. A gestora de ativos adquiriu 97% das unidades no ano passado. A empresa, em vez de habitação, tem mirado no potencial do prédio para estadias de curta e média duração, em projeto que deve ser entregue em 2027.

— Há questionamentos sobre qual o sentido de incentivos. Em muitos casos, a própria propaganda de venda traz a ideia de um investimento para ser explorado — acrescenta Laisa.

Por e-mail, a Secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano afirma que “embora o uso para aluguel de curta duração seja uma realidade, sobretudo em áreas com alta demanda turística da cidade, ele não representa o perfil predominante dos empreendimentos retrofitados licenciados até o momento”. Ressalta ainda que “o incentivo ao retrofit está ancorado em diretrizes do Plano Diretor e em marcos legais recentes, como a Lei de Reconversão de Imóveis e o Programa Reviver Centro”.

Interesse social

Além do incentivo ao retrofit, o Reviver Centro contempla diretrizes para a implementação de políticas públicas voltadas à habitação de interesse social. A professora avalia, no entanto, que esse tem sido um processo mais lento.

Um dos idealizadores do programa Reviver Centro, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, ex-secretário de Planejamento Urbano do Rio, diz que o avanço dos retrofits na cidade tem se mostrado mais sustentável do que outras iniciativas urbanas justamente por criar uma lógica que é atrativa para incorporadoras. Ele reconhece que ainda há desafios, como a qualidade do espaço público e o uso temporário de parte das unidades, voltadas para aluguel de curta temporada, mas avalia que o modelo tem potencial de transformação duradoura.

— A gente sabe que uma parte desse estoque está sendo considerada para uso temporário. Como urbanista, não acho ideal. Mas eu sempre faço questão de frisar também que é um estoque novo. Porque a infraestrutura já está feita, o prédio já está feito. Então, é uma questão mais fácil de endereçar do que você ter que criar o estoque residencial — afirma Fajardo, que projeta que 60% das unidades de retrofit estão sendo compradas por pessoas que desejam morar.

Insegurança: obstáculo

Para que a transformação do Centro se consolide, Fajardo ressalta que é necessária uma mudança de percepção sobre o espaço, para que atraia novos moradores. Um dos principais entraves, avalia, é a sensação de insegurança. Iluminação, presença policial e o surgimento de estabelecimentos comerciais e de serviços fazem parte do que, na visão dele, pode tornar a região mais viva.

Mariana, da Newmark, destaca que o modelo de uso misto, com presença simultânea de residências, comércio e serviços, é um caminho para facilitar a rotina de quem escolhe morar na região. Mas concorda que a falta de segurança ainda é um obstáculo relevante.

No mês passado, a prefeitura lançou o Reviver Centro Patrimônio Pró-APAC, para recuperar imóveis históricos, e o Reviver Centro Cultural, que apoia financeiramente atividades artísticas no térreo de prédios ociosos.


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