Setor da construção vê risco em mudanças no crédito imobiliário e prega cautela

em Jornal de Brasília, 12/agosto

A avaliação é que o desenho, em estudo pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não garante aos compradores taxas de juros iguais ou mais baratas que as praticadas hoje.

A proposta de flexibilizar o uso de recursos da poupança e instituir um novo modelo de crédito imobiliário no país é vista com ressalvas pelo setor da construção civil, que teme a desorganização da produção e comercialização de imóveis e até mesmo um abalo no setor bancário diante de um potencial risco sistêmico.

A avaliação é que o desenho, em estudo pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não garante aos compradores taxas de juros iguais ou mais baratas que as praticadas hoje. Eventual aumento dos custos de financiamento inibiria a venda de imóveis, comprometendo as receitas das incorporadoras -que ficariam sem dinheiro para honrar empréstimos já tomados para bancar a construção das unidades.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, o novo modelo de crédito habitacional prevê maior flexibilidade no uso de recursos do SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), que são uma fonte de captação mais barata para os bancos, pois a remuneração aos poupadores fica abaixo das taxas de mercado.

Hoje, os bancos recebem os depósitos na poupança e precisam direcionar pelo menos 65% dos recursos para operações de financiamento imobiliário, além de deixar 20% do valor depositado compulsoriamente no BC.

No novo modelo em estudo, não haverá direcionamento, nem depósito compulsório. O dinheiro da caderneta ficará sem carimbo, e o banco poderá usá-lo para fazer outras aplicações com rendimentos maiores, desde que tenha concedido empréstimos habitacionais em valor correspondente. Já a casa própria seria financiada com recursos de mercado, usualmente mais caros.

Para compensar parte desse custo extra, os ganhos obtidos pelas instituições com o uso flexível da poupança seriam empregados para manter juros menores no crédito habitacional, segundo técnicos que participam das discussões.

O setor se divide entre os que preferem não falar publicamente sobre a proposta e os que, ao fazê-lo, pregam cautela e defendem ajustes pontuais nas regras que já existem.

“Não há necessidade de ter pressa. Vamos fazer experiências. Nós temos tempo. O sistema financeiro da habitação está funcionando e vai funcionar muito bem, do jeito que está, pelo menos por mais de 25 anos. Temos tempo de criar uma série de novidades, todas ótimas, com calma”, diz o presidente executivo do Secovi-SP, Ely Wertheim.

“A caderneta de poupança vai se esgotar, na nossa opinião, num prazo de 20 a 25 anos. Então, não há necessidade de se criar um novo sistema hoje para um problema que, em tese, vai demorar 25 anos para acontecer. Temos tempo para maturar as ideias”, afirma.

A rapidez com que o governo pretende anunciar as mudanças é um fator que tem incomodado o setor. Os detalhes do novo modelo estão sendo fechados pela Casa Civil, pelos ministérios da Fazenda e das Cidades e pelo Banco Central, e técnicos envolvidos calculam a possibilidade de lançar as novas regras até o fim de agosto.

As medidas não dependem do Congresso Nacional e podem ser adotadas por resolução do CMN (Conselho Monetário Nacional), responsável pela formulação da política de moeda e crédito. Integram o colegiado os ministros Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento) e o presidente do BC, Gabriel Galípolo.

O uso do dinheiro da poupança sem carimbo valeria por um prazo determinado, que pode ficar em cinco anos. Para o governo, essa regra ajudaria a impulsionar a concessão de novos créditos habitacionais. Para representantes da construção, essa é justamente uma das fragilidades do novo desenho, uma vez que a equalização das taxas de juros acabaria antes do fim dos contratos.

“Vai dificultar muito a precificação [da operação]. Porque o Banco Central [propõe que], nos primeiros cinco anos, você pode usar aquele recurso como quiser, e você está tomando dinheiro de tesouraria [para conceder o empréstimo] por 12 anos. Fica uma coisa capenga, porque nos outros sete anos, mais ou menos, você não teria com o que equalizar a taxa de juros”, afirma o presidente da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), Luiz França.

Para ele, a proposta de mudança representa um “movimento bastante perigoso”, sobretudo no contexto atual de incertezas e taxa de juros elevada. A indicação de que o modelo passaria a valer logo, à medida que os contratos em vigor forem sendo quitados (cerca de R$ 40 bilhões ao ano), também preocupa.

“Em primeiro lugar, alterações são para eventualmente discutir nos momentos em que a economia está tranquila. Em segundo lugar, quando um banco vai fazer alguma coisa, primeiro faz um piloto. Se o piloto der certo, pode ampliar ou não. Então, do ponto de vista de gestão, eu já acho muito esquisito fazer isso, porque, se porventura o modelo não funcionar, não tem como voltar para trás”, afirma França.

A reportagem também procurou a Cbic (Câmara Brasileira da Indústria da Construção) e a Abecip (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança), que preferiram aguardar o anúncio oficial para comentar as medidas.

A Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) diz, em nota, que a decisão do governo de estudar novas alternativas de funding (fonte de financiamento) para o crédito imobiliária é acertada diante da queda das aplicações na poupança. No entanto, a entidade também prega cautela na discussão e diz acreditar que governo e BC irão aprofundar a análise antes de tomar uma decisão.

“A busca de novas opções é bem-vinda, mas será preciso analisar com calma e profundidade as implicações do novo modelo proposto”, afirma a Febraban.

O setor da construção acredita que, com a redução da taxa básica de juros, a Selic, as condições de financiamento imobiliário vão melhorar. O argumento é o de que o problema não é fonte de recursos, mas sim o custo das operações.

As entidades defendem ajustes pontuais. Wertheim, do Secovi-SP, diz que o BC poderia liberar metade do compulsório para instituições financeiras que já aplicam em habitação pelo menos 10 pontos percentuais acima dos 65% exigidos pelas regras da poupança. A medida beneficiaria a Caixa, principal operadora de crédito imobiliário no país, e injetaria até R$ 45 bilhões no sistema.

“Mas eu insisto, isso não vai mudar o custo do financiamento, que está atrelado à taxa de juros”, afirma.

Já França, da Abrainc, propõe a liberação imediata de 5% dos recursos da poupança parados no compulsório e use outros 5% para implementar um piloto do novo modelo. Os 10% restantes poderiam ser liberados gradualmente em cinco anos.

A proposta ainda prevê que, em caso de volume elevado de saques da poupança, o BC disponibilize o redesconto, uma linha de crédito na qual o banco comercial tomaria recursos emprestados para honrar os saques, dando títulos públicos como garantia.

O BC tem demonstrado resistência em apenas liberar o compulsório, mas o setor da construção afirma que a proposta do novo modelo, no fim das contas, faz justamente isso ao prever um modelo sem essa exigência. “Se ele [o BC] fala que não quer liberar o compulsório, então não deve fazer a operação dele, porque ele está liberando o compulsório em oito anos”, diz França.


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