‘Tokenização’ imobiliária cresce mesmo sem regulação
em Valor Econômico, 1º/julho
Com limitações na lei, modelos se inspiram naquilo que o Direito permite
A comercialização de imóveis “tokenizados”, registrados de forma digital em blockchain, cresceu no Brasil nos últimos anos, com a entrada e expansão de diversas empresas no setor. No entanto, a falta de regulamentação traz insegurança jurídica e várias iniciativas se apoiam em brechas no regramento atual. Especialistas dizem que o futuro do setor depende de mudanças normativas, como uma solução para a exigência de registro em cartório.
A consultoria Deloitte estima que US$ 4 trilhões em imóveis serão tokenizados no mercado global até 2035, contra US$ 300 bilhões em 2024, mostra relatório de abril. No Brasil, a expectativa é que, com o avanço da integração cartorária e com a maturação de instrumentos como o Drex - iniciativa de tokenização do sistema financeiro do Banco Central -, o segmento ganhe segurança e escala.
No ambiente do piloto, como o dinheiro também está tokenizado na forma da moeda digital Drex (que representa o real), é possível programar dinheiro e entrega da propriedade para ocorrerem ao mesmo tempo, facilitando a operação e possivelmente reduzindo os intermediários se a regulação permitir.
Ao Valor, os participantes dos testes disseram que foi possível simular a venda de um imóvel de uma pessoa que já o havia financiado com um banco para outra que também adquiriu por meio de crédito bancário, mas de outra instituição financeira. A certidão do imóvel foi tokenizada e a entrega versus pagamento (DvP) ocorreu na rede descentralizada. “Os primeiros experimentos indicam ganhos potenciais de eficiência e redução de custos, mesmo sem alterações regulatórias que poderiam permitir inovações mais disruptivas”, disse o consórcio SFCoop.
Enquanto o resultado do Drex não está disponível para a população, os sócios do Demarest Advogados e especialistas nas áreas bancária, financeira e de ativos virtuais, Yuri Nabeshima e Marcus Fonseca explicam que a tokenização no setor imobiliário não dá o direito de propriedade sobre o bem. Os tokens representam direitos relacionados ao imóvel - de uso, de exploração econômica e de conversão futura em propriedade. “Quem detém o token não tem o imóvel em si, mas um direito sobre aquele imóvel, seja de exploração, de remuneração, seja de converter em propriedade quando exigir, e aí leva-se a cartório”, afirma Fonseca.
Nabeshima, que também é presidente da Comissão de Inovação e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim), complementa: “Eu gosto de falar que há a tokenização ‘stricto sensu’ e ‘latu sensu’. A primeira seria a possibilidade de adquirir um imóvel por meio da aquisição do token. É o que o mercado deseja, mas hoje não é possível, então a gente trabalha para criar modelos que já são usados no Direito”.
Erik Oioli, sócio de mercado de capitais do VBSO Advogados, diz que ainda há limitações nas leis de registro público para tokens representativos de direitos sobre o imóvel. “As leis exigem que a propriedade do imóvel seja transcrita na matrícula do imóvel perante o Registro de Imóveis competente.”
As leis exigem que a propriedade do imóvel seja transcrita na matrícula do imóvel perante o Registro”
Os advogados dizem que não existem projetos de lei, embora haja discussões em curso, como uma iniciativa encampada pelo Cofeci, que regula o setor de corretores de imóveis no país. Em dezembro de 2024, uma portaria do Cofeci criou uma comissão especial para estudar o mercado imobiliário brasileiro com uso de blockchain, em diálogos que incluiriam o BC.
Andreas Blazoudakis, CEO e fundador da netspaces, uma empresa que trabalha com tokenização imobiliária apesar das incertezas no tema, diz que espera por uma manifestação do Cofeci para dar maior segurança jurídica ao assunto. “O mercado espera um avanço do Cofeci, e isso ajudaria o corretor a se sentir protegido”, afirma. No caso do mercado imobiliário, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o BC não têm responsabilidade regulatória, já que imóveis não são valores mobiliários e a competência do BC se encerra nas operações financeiras, sem entrar no registro.
A netspaces é parceira da CF Inovação na criação do “index”, marketplace que planeja abranger a tokenização completa do investimento imobiliário, desde os contratos da planta até a matrícula. A previsão é lançar a plataforma com 10 mil corretores e 100 incorporadoras ainda em 2025.
Copresidente do index e ex-diretor do BC, Tony Volpon avalia que o engajamento dos corretores é crucial para mostrar o valor da digitalização a incorporadoras e clientes e diz que há interlocução com cartórios: “Os cartórios têm uma função vital que será preservada nessa digitalização”, garante.
Por enquanto, uma das alternativas estudadas pelo setor é o uso da Lei de Multipropriedade, que trata da divisão do uso de um imóvel em frações de tempo. Fundada em 2021, a empresa Ribus usa tecnologia blockchain para aluguel de curta temporada, inspirada no Airbnb. Com cerca de 2 mil imóveis ativos, a empresa planeja ter 10 mil até o fim do ano e abrir um escritório no Texas (EUA) em 2025.
O diretor de tecnologia e de crescimento da Ribus, Eduardo Galvão, explica que a empresa tem três produtos principais que se retroalimentam. A infraestrutura é viabilizada pela Dexcap, plataforma autorizada pela CVM. A autarquia colocou a tokenização de valores mobiliários na Resolução 88, que estabelece as regras para captação via financiamento coletivo (“crowdfunding”).
“O Ribus Share [um dos produtos] representa uma fração do direito econômico sobre um ativo imobiliário. O investidor que adquire esse token, por exemplo, tem direito a participar proporcionalmente dos rendimentos gerados pelo imóvel, como aluguel, venda futura ou valorização”, afirma Galvão.
Blazoudakis, da netspaces, explica que há quem leve a tokenização imobiliária para o mercado de capitais para aproveitar a regulação que existe para tokens por lá, por meio de instrumentos como CRIs, que são recebíveis imobiliários securitizados, por meio da Resolução CVM 88. O problema, diz ele, é que isso exclui a maior parte do mercado: “O mercado imobiliário raiz, com gestão da posse e financiamento da Caixa, que faz 3 mil financiamentos por dia, não fará no mercado de capitais, e sim ligado ao ambiente registral”.
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