O belíssimo Palacete São Cornélio, na Glória, está em pauta na Câmara do Rio. Tombado pelo Iphan desde a década de 30 e desocupado desde 1999, o casarão em estilo neoclássico erguido em 1862, tornou-se o grande obstáculo e, ao mesmo tempo, um bom trunfo da Santa Casa da Misericórdia, proprietária do lindo prédio neoclássico e do terreno de 5 mil metros quadrados da propriedade, localizada na esquina das ruas da Glória e do Catete, bem em frente ao metrô, a metros da ESPM na Vila Aymoré e dos novos lançamentos que fizeram grande sucesso na região.
O prédio, depois de abrigar um Asilo, foi ocupado pela Faculdade de Medicina Souza Marques, que, ao deixar o imóvel, deixou-o, segundo a Santa Casa, em péssimo estado. A instituição, que começa a emergir de uma crise que já dura mais de 10 anos, afirma valorizar o imóvel como parte de sua história de beneficência e serviços aos mais pobres, e não gostaria de perder o imóvel: por isso, segundo o Mordomo dos Prédios (uma espécie de gestor do patrimônio) Cláudio André de Castro, a idéia é arrendá-lo por muitos anos ou realizar uma permuta com alguma construtora, salvando o casarão e recebendo parte das unidades num futuro empreendimento autorizado pelos órgãos de patrimônio e pela Prefeitura no terreno anexo. “No decorrer de 2025, a entidade conseguiu quitar mais de 100 milhões de reais em dívidas trabalhistas, anulou dívidas fraudulentas e recuperou diversos imóveis invadidos e ilegalmente ocupados: o Provedor Francisco Horta e sua equipe estão virando o jogo, e salvar o Palacete São Cornélio seria mais um símbolo deste novo momento que vive a instituição” diz Castro, também conhecido por ser diretor da Sérgio Castro Imóveis.
Com o belíssimo imóvel praticamente em ruínas e o um restauro orçado em cerca de R$ 15 milhões, a entidade tenta viabilizar algum negócio no imóvel há anos. Mas as restrições impostas pelos órgãos de patrimônio – que é tombado internamente, além da fachada e telhado – vem travando qualquer negociação, segundo a instituição: o negócio que dá pra fazer hoje lá não viabiliza o restauro do prédio. Agora, a Câmara do Rio analisa um projeto de lei do vereador Pedro Duarte (NOVO) – presidente da Comissão de Urbanismo da casa – que pretende flexibilizar o gabarito da área, hoje limitado entre três e cinco pavimentos, para até 10, 12 ou até 15 andares, mediante contrapartidas de preservação a serem dadas pelo empreendedor em benefício não só do prédio como do entorno. O texto, segundo o edil, não busca apenas viabilizar a venda do imóvel, mas encontrar uma solução compatível com o valor histórico do palacete e gerar uma requalificação no entorno. “O São Cornélio é uma jóia do Rio, e é uma lástima estar nesta situação hoje. Nosso objetivo é viabilizar ali um empreendimento que, em troca da construção, faça a recuperação do histórico imóvel, segundo as regras de patrimônio. Isso dará vida a todo o terreno e seu entorno, bem no coração da Glória”, explica Duarte, conhecido por sua preocupação com as áreas históricas da cidade e também por defender o livre mercado: o vereador é oposição mas se tornou apoiador de primeira hora de projetos como o Reviver Centro.
Vale notar que uma simples caminhada pela região demonstra que todos os seus problemas decorrem do abandono do Palacete. Mendigos cercam o Palácio e estendem roupas sujas na sua fachada; viciados ocupam suas calçadas e atacam pedestres; o canteiro central é ocupado por camelôs clandestinos e “burros-sem-rabo” esperam por serviços. O entorno, já recuperado, sofre com o abandono do São Cornélio, que decorre justamente de sua inviabilidade econômica, devido às obrigações de restauro por dentro e por fora. Mas é inquestionável, face a exemplos recentes, o poder de transformação que restaurar um imóvel tão emblemático teria na região.
A proposta em discussão prevê três cenários de gabarito. No mais conservador, de 10 pavimentos, as obrigações incluem revitalização, restauro e adequações de segurança do palacete. Com 12 andares, soma-se a obrigatoriedade de se criar uma fachada ativa no térreo, seguindo a tendência urbanística atual de manter fachadas ativas. Para 15 pavimentos, o pacote inclui requalificação das calçadas da Rua do Catete e implantação de iluminação pública reforçada, além do dobro de superfície drenante exigida pela lei. O imóvel também possui uma saída para a rua Santo Amaro.
Na prática, o terreno tem uma área posterior de 4 mil metros quadrados totalmente subutilizada, com potencial para novos usos residenciais ou comerciais: isso já descontando o espaço do lindíssimo jardim histórico, que deve ser mantido, atrás do imóvel. Mas, como lembra a Santa Casa, os limites de construção impostos pelo Iphan e pela Prefeitura do Rio tornaram o ativo quase impossível de negociar. Em nota, a entidade afirma que “as limitações urbanísticas inviabilizaram a venda, assim como os entraves colocados pelos órgãos de patrimônio”. Ressalta também que qualquer comprador precisaria assumir o custo integral da restauração e ainda garantir retorno financeiro, algo difícil em um modelo tão restritivo, em que o imóvel deve ter não só sua belíssima fachada restaurada, como também todos os seus pisos, afrescos e detalhes internos, como se fosse uma igreja ou museu.
Do ponto de vista do patrimônio, o dilema é conhecido. O casarão, que já abrigou a moradia de um dos principais banqueiros do Império, o Asilo São Cornélio e, depois, a Faculdade de Medicina Souza Marques, vem se deteriorando desde que a faculdade desocupou o imóvel nos anos 90. As infiltrações avançam, os cupins comprometem estruturas e as pichações escondem detalhes arquitetônicos preciosos, pois não há educação patrimonial que resista ao abandono. Há inclusive, já devidamente registrado, um projeto criterioso de restauro elaborado pelo próprio Iphan – conhecido pela capacidade técnica de seus profissionais, que terá de ser seguido à risca pelo futuro comprador. Mas se o restauro acompanhar a construção de um edifício no terreno de trás, o milagre acontece: aparece alguém pra pagar a revitalização, e devolver a valiosa construção à cidade.
A discussão sobre o Palacete acontece num momento favorável para o bairro, já que a Glória vive sua melhor fase em décadas: dias de glória, mesmo. Revitalizações recentes da Prefeitura do Rio empurraram o bairro para a lista dos mais descolados do país, ampliando a demanda por lançamentos. O projeto de conversão do antigo Hotel Glória, por exemplo, tocado pelo fundo Opportunity, em parceria com a SIG, puxou a onda de retrofits que se espalhou pela cidade, eleita Capital Mundial da Arquitetura pela UNESCO em 2019. A Valente Empreendimentos viabiliza dois grandes projetos de requalificação nas imediações, e o lindíssimo Palácio São Joaquim, sede da Arquidiocese do Rio, está tinindo.
O ideal e o possível
Marconi Andrade, restaurador, fundador do grupo SOS Patrimônio – de protetores da herança arquitetônica carioca – e membro da Associação de Moradores da Glória, reconhece o dilema com a franqueza de quem conhece o objeto por dentro. Ele afirma que, no mundo ideal, o Palacete seria restaurado com jardins amplos nos fundos e devolvido à cidade como restaurante elegante ou centro cultural. Mas admite que essa solução não tem aderência financeira nenhuma.
Ele lembra que grandes empresas já avaliaram a compra e desistiram porque precisavam construir cerca de 12 mil metros quadrados — e o Iphan aceitaria apenas 7 mil. “A gente fica muito triste em ver a situação do Palacete. Ele está à beira do colapso, com infestação de cupim que pode destruir a estrutura. E, sinceramente, vou até contra os meus princípios de preservacionista: aceitaria um prédio no jardim, com a casa totalmente restaurada, para não perder seu valor histórico”, diz, lembrando que o imóvel tem entrada por 2 ruas.
Na outra ponta do debate, Leila Marques, conselheira do CAU/RJ, adota tom mais cauteloso. Ela lembra que a chamada “reconversão” prevista na Lei Complementar 232/2021 pode ser remédio ou veneno, especialmente em áreas tombadas. Para ela, flexibilizar parâmetros sem um rigor técnico absoluto abre a porta para erros já cometidos pelo Rio.
“Intervenções mal conduzidas podem comprometer a integridade arquitetônica do palacete, seja pela remoção de elementos originais, seja pela introdução de adaptações estruturais que agridam sua materialidade. Há ainda o impacto paisagístico: edifícios altos podem esmagar a escala do bem tombado, lançar sombras permanentes sobre ele e alterar de forma irreversível a leitura da paisagem da Glória. O Rio já viu isso acontecer em áreas como Lapa, Flamengo e Botafogo, onde empreendimentos que pareciam, no papel, compatíveis com a vizinhança acabaram produzindo rupturas visuais e descompassos urbanos difíceis de justificar.”
Para Castro, o fato do palacete ter um pé direito bastante alto, e ficar numa calçada relativamente estreita, aperta o ângulo de visão, de forma a que o prédio a ser construído sequer será notado por quem caminha na frente. “A região é repleta de prédios de mais de 10 andares, 12 ou 15. Inclusive vizinhos: o São Cornélio precisa ser devolvido à população do Rio de Janeiro, pois é memória da maior obra de misericórdia já levada adiante nesta cidade. Morar ali, num edifício a ser construído no terreno dos fundos, será uma oportunidade de se morar num bairro que se revitaliza, e contribuir para que a cidade volte a ter um equipamento cultural de primeira linha”. O representante da Santa Casa lamenta a situação do prédio mas explica que, uma vez em bom estado, será facilmente locado, seja para um centro de convenções, um equipamento cultural, um escritório de arquitetura e urbanismo, um restaurante de primeira linha ou algo ligado à área da educação. “Procura não falta. A questão é viabilizar o restauro, e parece que as autoridades entenderam finalmente o problema, e temos certeza que o IPHAN também irá se sensibilizar“, explica.