Nó habitacional exige múltiplas soluções; retrofit de prédios antigos é uma delas. Saiba mais
em Estadão / SP em transformação, 4/outubro
Até 2030, o déficit de moradias deve chegar a 462 mil domicílios em SP; erguer mais casas não basta, alertam especialistas - é preciso analisar as diferentes necessidades.
Garantido pela Constituição de 1988, ao lado de saúde, educação e segurança, o direito à moradia continua sendo um dos maiores desafios sociais da cidade mais rica do Brasil. Condomínios de luxo e empreendimentos milionários convivem com um déficit habitacional de 369 mil domicílios, segundo dados da Prefeitura.
Esse número não significa apenas as casas que faltam e inclui imóveis inadequados, famílias espremidas em coabitação, aluguéis que consomem a maior parte da renda e moradias improvisadas. E, mesmo que o poder público corra atrás dessa conta, focando apenas em novas construções, especialistas alertam: erguer mais casas não basta para resolver o problema.
A projeção é preocupante: até 2030, o déficit deve chegar a 462 mil domicílios. Para zerar essa conta, seria necessário produzir cerca de 120 mil novas unidades por ano, de acordo com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Na prática, os números estão longe disso — o programa Minha Casa Minha Vida contratou pouco menos de 120 mil unidades em dois anos (2023 e 2024).
Esses números indicam o tamanho do problema, mas não expressam sua complexidade, na opinião do urbanista Anderson Nakano. “Déficit é um conceito numérico, numa lógica de construir novas moradias de maneira padronizada, sem considerar a diversidade de necessidades habitacionais das famílias”, afirma o professor do Instituto das Cidades da Unifesp e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
A professora Luciana Royer complementa o argumento ao propor um olhar para as necessidades locais de cada distrito. “O problema habitacional afeta as diversas classes sociais de forma muito diferente. Não posso olhar para os diferentes estratos de renda na cidade e aplicar o mesmo programa”, diz a docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Retrofit pode ser a saída?
Em alguns casos, a busca por um teto tem contornos dramáticos. Depois de chegar a São Paulo, no início dos anos 2000, a auxiliar de limpeza Edjane Silva Santos, de 47 anos, ficou num beco sem saída. Sem conseguir alugar um imóvel para ela, o marido e os filhos, passou uma noite na rua. Graças a parentes, foi morar nos fundos de uma serralheria no Bom Retiro, na região central. Ela se lembra de inundações constantes no verão. Foram sete anos assim.
A habitação é uma mercadoria com lógica particular: a oferta crescente valoriza terrenos e bairros, elevando o preço do metro quadrado. O preço de venda de imóveis residenciais em São Paulo apresentou elevação de 6,56% em 2024, o maior desde 2014, de acordo com o Índice FipeZAP. “Não é a produção indefinida de imóveis que vai fazer o preço despencar e que vai diminuir o valor do aluguel”, diz Luciana Royer.
O sonho da casa própria, assim, continua distante para muitas famílias. É desse labirinto que a educadora Denise Cavalcanti, de 37 anos, está tentando sair. Desde 2010, ela busca seu cantinho na região central de formas variadas. Depois de participar de movimentos que lutam por moradia e recorrer ao aluguel, ela foi contemplada no início do ano como moradora do Residencial Prestes Maia, na região da Luz.
É o primeiro retrofit para famílias de baixa de São Paulo, segundo a Prefeitura. Depois de uma reforma de R$ 76 milhões que começou em 2022, o prédio foi entregue em abril deste ano para 287 famílias.
Edjane, aquela que viveu de favor no Bom Retiro, também mora no Prestes Maia. “Hoje tenho um endereço”, comemora a baiana de Juazeiro.
Esse endereço foi viabilizado pela Lei do Retrofit, que oferece incentivos fiscais a construtoras interessadas em requalificar prédios antigos da região central, como isenção de IPTU, redução da alíquota de ISS e isenção de ITBI e outras taxas municipais. “A lei pegou”, comemora Fabricio Cobra, secretário municipal de Subprefeituras.
Cobra contabiliza 32 edifícios em processo de retrofit, que combinam incentivos fiscais e apoio financeiro direto. São 2.271 mil novas unidades, além de projetos voltados a escritórios, hospedagem e outros usos comerciais.
Especialistas questionam o número de habitações de interesse social nesses projetos que seriam, em sua maioria, voltados para um público de alta renda. Dos 32 edifícios “retrofitados”, o poder municipal cita apenas três de interesse social.
Turistas substituídos por famílias de baixa renda
Outro exemplo de retrofit de interesse social é o antigo Hotel Grão Pará, na Praça da Bandeira, 27. Referência na capital na década de 1940, o hotel tinha boa taxa de ocupação, mesmo concorrendo com os renomados Hotel São Paulo e Othon Hotel. O prédio, no entanto, não resistiu à degradação da região central. Em 2012, foi desapropriado pela Cohab-SP.
O Estadão visitou o local no início de setembro. A restauração preserva detalhes históricos, como os tacos originais dos pisos, e insere as famílias em uma região bem localizada, perto de opções de transporte, como o Terminal Bandeira e estações de metrô. Sem falar da vista única do Vale do Anhangabaú e da Praça da Bandeira.
Os turistas de outrora serão substituídos por famílias de baixa renda. O prédio de 9 andares terá 44 apartamentos para atender famílias que ganham de três a seis salários. O governo de São Paulo, por meio da CDHU, tem atuado em parceria com a Cohab para instituir linhas de financiamento para famílias beneficiadas. Ali ainda não tem ninguém morando. A CDHU vai fazer o chamamento dos interessados.
Sidney Cruz, secretário municipal de Habitação, afirma que a Prefeitura de São Paulo já diversifica suas ações, como propõem os urbanistas. “Isso vem ao encontro das políticas desenvolvidas na secretaria. Temos, por exemplo, a regularização fundiária, com a entrega de mais de 56 mil títulos desde 2021. Só em 2025, foram quase 6 mil títulos”, diz o secretário.
A regularização fundiária e titulação, isto é, dar escritura ou matrícula definitiva para quem já mora em núcleos irregulares, oferece segurança jurídica para os proprietários e acesso a financiamentos, por exemplo. Por outro lado, muitas áreas ainda carecem de infraestrutura básica, como saneamento, drenagem, água, esgoto e transporte.
Sobre projetos de urbanização de favelas, Cruz afirma que a Prefeitura desenvolve atualmente 40 obras espalhadas pela cidade que vão beneficiar 50 mil famílias.
O carro-chefe da ação municipal, ainda de acordo com o secretário, é o programa “Pode Entrar”, que incentiva a produção habitacional de interesse social, inclusive por meio de aquisição de imóveis prontos no mercado privado, requalificação e financiamento/locações subsidiadas. Em 2025, foram entregues duas mil unidades; outras 43 mil estão em construção.
Novos paradigmas para desafios atuais e do futuro
A arquiteta e urbanista Mirtes Birer Koch afirma que o Plano Diretor e sua revisão incentivaram a produção de Habitações de Interesse Social (HIS) em áreas bem localizadas. Para ela, professora do Centro Universitário Belas Artes, “a legislação também flexibilizou parâmetros urbanísticos, permitindo a construção de edifícios mais altos e com maior densidade habitacional”, o que ajuda a “reduzir os custos das unidades”.
O que os urbanistas propõem, ao questionar a centralidade do déficit habitacional nas políticas públicas, é um novo paradigma para enfrentar os desafios atuais e do futuro. Ele seria baseado na diversificação de soluções de moradia. A construção de novas unidades, segundo eles, deve ser apenas uma das opções dentro de uma política habitacional mais ampla, que pode incluir, por exemplo, a urbanização de favelas em larga escala e a regularização fundiária.
Fabricia Zulin, arquiteta e urbanista da Unicamp, acrescenta o aluguel social, com subsídios de longo prazo do poder público para quem não pode — ou não quer — encarar um longo financiamento. Essa ferramenta deve ser mais explorada, na opinião dos especialistas, principalmente diante do envelhecimento da população.
A cidade é o palco de grande avanço na produção habitacional nos últimos anos, estimulada pelo Plano Diretor e pela Lei de Zoneamento, que oferecem vantagens às construtoras que erguem imóveis populares. O principal estímulo é a possibilidade de erguer prédios mais altos sem pagar a mais (a chamada outorga onerosa). Em regiões onde o metro quadrado é mais caro, as construtoras conseguem diluir seus custos em várias unidades.
“O centro vai ser a bola da vez para as pessoas morarem. O movimento já começou, mas vai acelerar no ano que vem”, aposta Ely Wertheim, CEO do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP). “Quanto mais a legislação favorecer a moradia nos locais da cidade que já têm infraestrutura, melhor para a cidade e para as pessoas”, diz.
Enquanto isso, movimentos de moradia apontam outra contradição: há centenas de imóveis desocupados na cidade. De acordo com o Censo de 2022 do IBGE, a cidade de São Paulo possui 588 mil imóveis residenciais vagos, o que representa cerca de 12% do total de domicílios da cidade. Isso cria uma tensão.
“Um das medidas urgentes é a verificação de moradias disponíveis, além de notificar imóveis vazios e abandonados por meio de um trabalho técnico e social”, afirma Carmen Silva, líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). A Prefeitura diz que notificou 2.683 propriedades ociosas desde 2014 para dar uso a esses espaços.
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