Limites e oportunidades na atuação direta dos fundos imobiliários como incorporadores
em Consultor Jurídico, 5/setembro
A presença dos fundos de investimento imobiliário (FIIs) na cadeia da construção civil cresce a passos largos, acompanhando a sofisticação do mercado de capitais brasileiro e a capacidade do setor imobiliário de estruturar operações que conectam investidores de diferentes perfis a empreendimentos de grande porte. No entanto, uma pergunta insiste em surgir: pode um FII atuar diretamente como incorporador?
A dúvida não é meramente acadêmica. Ela ganha força quando se coloca lado a lado o que estabelece a Resolução CVM nº 175/2022, atual marco regulatório dos FIIs, e o que exige a Lei nº 4.591/1964, que disciplina a incorporação imobiliária no Brasil. A CVM autoriza que FIIs adquiram terrenos, construam, participem de sociedades operacionais, realizem incorporações por meio de veículos específicos e exerçam direitos inerentes à propriedade sobre imóveis para exploração comercial. A Lei de Incorporações, por sua vez, impõe ao incorporador um conjunto de obrigações formais que parecem não dialogar bem com a natureza jurídica dos FIIs.
De fato, o artigo 75 do Anexo Normativo III da Resolução CVM 175 permite investimentos em imóveis em todas as fases — do terreno cru à unidade concluída — e até a participação direta em sociedades voltadas à atividade imobiliária, inclusive a incorporação. A semelhança com a definição do artigo 28 da Lei 4.591/1964, que descreve a incorporação como o conjunto de atos voltados à construção e comercialização antecipada de unidades autônomas, é quase desconfortável: o que o FII pode fazer na prática se aproxima muito do que um incorporador faz.
Mas, no plano jurídico, existem divergências relevantes. A Lei de Incorporações exige que o incorporador seja sujeito de direitos e obrigações, assine compromissos de compra e venda, responda por vícios construtivos, registre o empreendimento e apresente garantias aos adquirentes. Já o FII, nos termos do artigo 1.368-C do Código Civil, é um condomínio especial sem personalidade jurídica. É representado por seu administrador, sim, mas representação não é o mesmo que assumir, de forma direta, obrigações como parte de um contrato de incorporação.
É nesse ponto que surgem lacunas ainda pouco exploradas. O patrimônio de afetação, por exemplo — regime criado para dar segurança ao comprador e garantir ao incorporador tributação favorecida (4% sobre a receita) —, poderia se aplicar a um FII? Se o FII vender unidades, os valores recebidos seriam tributados como receita de incorporação ou poderiam ser distribuídos diretamente aos cotistas, sem incidência de IR? Essa dúvida não é apenas fiscal; ela diz respeito inclusive à concorrência entre fundos e incorporadoras. Afinal, se a resposta fosse positiva, teríamos um FII disputando mercado com incorporadoras tradicionais em condições tributárias potencialmente mais vantajosas.
A mesma incerteza paira sobre a responsabilidade perante consumidores. Em caso de vícios construtivos ou descumprimento contratual, quem responderia em solidariedade com o fundo? O administrador ou os cotistas? A Lei 4.591/1964 nasceu com um viés protetivo, colocando o adquirente no centro das garantias legais. Mas no caso de um FII-incorporador, o que aconteceria se, para assegurar a reparação, fosse necessário “alcançar” o patrimônio dos cotistas? Seria aplicável a teoria da desconsideração?
Em meio a esse cenário nebuloso, o Instituto do Registro Imobiliário do Brasil (Irib), na consulta protocolada sob o nº 9.441, de 28/08/2012 já manifestou posição contrária à possibilidade de o FII figurar como incorporador direto. Segundo o Irib, o fundo não é sujeito de direito e a atuação por meio de seu administrador não resolve o problema, já que não consta do seu objeto social a atividade de empreendedor imobiliário.
Compatibilização
A despeito disso, a prática demonstra que há casos no mercado em que o FII consta como incorporador, sinalizando que, na prática, o tema já é mais do que hipotético. Entre o risco de realizar uma incorporação imobiliária que poderá ser objeto de questionamentos e o benefício de se valer de um fundo como incorporador direto, existem mecanismos para compatibilizar as limitações legais com o interesse econômico dos cotistas. Dentre estes, destacam-se:
- a atuação do FII como terrenista, o fundo adquire o imóvel e celebra contrato de desenvolvimento ou de construção com uma sociedade de propósito específico (SPE) que assume formalmente o papel de incorporadora, respondendo pela aprovação, registro e execução do projeto, enquanto o FII participa do resultado por meio da valorização ou da alienação futura das unidades;
- a participação do FII como sócio da SPE incorporadora — ingresso no capital social da SPE para participar indiretamente da incorporação, frequentemente com instrumentos societários que garantem influência sem configurar ingerência direta; e
- a estrutura de financiamento — atuação do fundo como credor (CRIs, contratos de mútuo etc.), com retorno mais previsível e garantias atreladas ao fluxo de vendas, ainda que com participação reduzida no upside do negócio.
Em todas essas alternativas há presença econômica efetiva dos FIIs na cadeia da incorporação, porém mediada por estruturas que visam mitigar os riscos registrais, tributários e de responsabilidade civil.
Diante disso, o que se vê é um cenário em que os FIIs, embora limitados, já se movimentam na prática como agentes centrais na cadeia da incorporação – ainda que por meio de estruturas indiretas, cuidadosamente desenhadas para contornar os entraves legais e mitigar riscos. A atuação como terrenistas, sócios de SPEs ou financiadores evidencia que a barreira entre investidor institucional e incorporador está cada vez mais tênue, desafiando os limites tradicionais entre propriedade, risco e responsabilidade.
Nesse contexto, o ordenamento jurídico se vê diante de um dilema: manter a rigidez conceitual da figura do incorporador, ancorada em uma legislação da década de 1960, ou evoluir para reconhecer e regulamentar as novas formas de protagonismo financeiro na produção imobiliária. Afinal, se o fundo age como incorporador, colhe os frutos da incorporação e participa do processo decisório, até que ponto é possível (ou desejável) mantê-lo fora do alcance das responsabilidades próprias dessa atividade? O próximo passo da financeirização da incorporação imobiliária passa pela resposta desta pergunta.
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