Expansão e mudanças na moradia
em Valor Econômico, 17/abril
Avanço da construção formal se manteve apesar da alta da Selic nos últimos três anos, com programas de habitação do governo, ampliação dos mercados de capital no financiamento imobiliário e ganhos de longo prazo de reformas microeconômicas.
Mais de um quinto dos quase 100 milhões de casas e apartamentos existentes no Brasil têm menos de 15 anos de construídos. O Censo de 2022 revelou perto de 23 milhões de domicílios a mais do que o de 2010. Ou seja, um crescimento de 34% em pouco mais de uma década, com o número de apartamentos crescendo mais de 50%, enquanto a população cresceu apenas 6,4% (+12,4 milhões) no período.
A construção formal, retraída na década passada, expandiu na esteira da baixa da Selic a partir de 2019. Esse dinamismo se manteve, apesar da alta da Selic nos últimos três anos, com programas de habitação do governo federal, ampliação dos mercados de capital no financiamento imobiliário e ganhos de longo prazo de reformas microeconômicas, como a criação do patrimônio de afetação em 2004, que trouxe mais segurança ao financiamento imobiliário privado.
As estatísticas do setor imobiliário são fragmentadas e apresentadas sob óticas nem sempre fáceis de reconciliar. Mas há pouca dúvida de que 2024 foi bem ativo, com 1,2 milhão de moradias novas e usadas financiadas por várias fontes (Abecip) e a venda de 400 mil novas habitações verticais (CBIC). Aí estão incluídas aquelas do Minha Casa Minha Vida (MCMV), programa em que a construção de apartamentos, ao invés de casas, tornou-se mais frequente. Os lançamentos do segmento chamado de médio e alto padrão subiram 20%, e as unidades vendidas 5%, impulsionadas pelas de alto padrão, permitindo o valor comercializado crescer mais de 20%, depois de um 2023 também bom.
O setor imobiliário tem se beneficiado do crescimento econômico. O FGTS ganhou com a ampliação do emprego formal, fechando 2024 com um estoque de mais de R$ 0,5 trilhão emprestado a compradores, principalmente na baixa renda como parte do MCMV. Esse programa é um guarda-chuva que cobre tanto moradias financiadas pelo orçamento federal (183 mil desde 2023), quanto grande variedade de projetos privados ou imóveis existentes em certas faixas de preço e atendendo critérios crescentemente ligados ao acesso aos serviços urbanos, que podem, assim, pleitear acesso ao crédito mais barato, e.g., do FGTS. Desde 2023, foram contratadas cerca de 1,4 milhões de operações com construtores ou compradores sob esse guarda-chuva.
Isenções tributárias ajudaram o estoque de instrumentos como LCI, CRI e LIG a alcançarem no final de 2024 valores de R$ 400 bilhões, R$ 226 bi e R$ 116 bi respectivamente, irrigando o crédito para diversos segmentos, inclusive via bancos públicos tradicionalmente dependentes da caderneta de poupança, o estoque da qual, aplicado a taxas reguladas e livres, está perto de R$ 650 bi (www.bcb.gov.br/estatisticas/mercadoimobiliario). E, a inadimplência caiu para 1%, nível mais baixo desde 2006.
Apesar da ampliação do crédito imobiliário e da multiplicação dos domicílios nos últimos dez anos, apenas 12,5% dos que moram em domicílios próprios aqui, incluídos os do MCMV, têm algum financiamento em curso, contra mais de 60% de proprietários com uma hipoteca nos EUA. Além disso, o “déficit habitacional” oficial continua estacionado em 6 milhões de moradias e a população em favelas saltou 40%, para 16,4 milhões de pessoas, desde 2010. No Censo, as favelas têm 6,6 milhões de domicílios, 85,6% já com acesso à rede geral de saneamento, mas apenas 3% dos estabelecimentos de ensino e 1% dos de saúde do país, apesar de nelas viverem 8% da população brasileira.
Esses contrastes são de um Brasil que mudou desde 2000, a começar pela queda do número médio de moradores por unidade doméstica (3,7 pessoas em 2000, 3,3 em 2010 e 2,8 em 2022) e da proporção de domicílios permanentes com mais de 3 pessoas dormindo no mesmo cômodo (9,6% em 2000, 5,6% em 2010 e 2,6% em 2022).
A proporção de unidades com apenas um morador saltou de 12% em 2010 para 19% hoje, ou seja, o número dessas unidades duplicou (+ 6 milhões de domicílios). No caso dos idosos, quase 30% já vivem sozinhos. A ocupação menos densa das moradias também reflete a alta entre os dois censos da proporção de chefes de família mulheres, de 39% para 49%, e a baixa da de lares com dois cônjuges, de 65% para 57%. A demanda habitacional também se mantém aquecida porque, apesar da população de 0-25 anos ter encolhido entre 2010-22 (-10 milhões), a população de 25-39 anos, mais interessada em ter moradia, manteve-se estável.
As transições etária e da composição das famílias se refletem também no aumento de 27% desde 2010 das pessoas que moram de aluguel. De fato, famílias monoparentais com filhos de até 14 anos de idade, hoje mais frequentes, moram de aluguel em proporção 70% maior do que a da população geral (21%), tendência também dos jovens urbanos, que talvez tenham maior tolerância a arranjos transitórios. A expansão dos dois grupos, em geral de renda mais baixa que a média, vem contribuindo para sustentar o componente do “déficit habitacional” relativo às famílias que gastam mais de 30% da sua renda em aluguel. Esse componente do índice tem se contraposto à melhora daqueles relativos ao número de domicílios rústicos e à coabitação forçada de mais de uma família sob o mesmo teto, somando-se ao componente relativo a domicílios improvisados, também calculado a partir da PNAD anual, que aparenta evolução menos benigna do que a sugerida pelo Censo.
Olhando para frente, tem havido um esforço para ampliar de um lado as fontes de financiamento imobiliário para além dos mercados de capital, recentemente com receitas públicas da produção de petróleo, e do outro, a oferta de mão de obra, cada vez mais especializada. São desafios que se juntam a indagações sobre as perspectivas do “déficit habitacional”, o significado do crescente número de domicílios vagos (11 milhões em 2022) e o impacto na mobilidade e funcionalidade urbana do espraiamento das cidades, principalmente de médio porte (WRI), e esvaziamento do transporte coletivo pelos veículos de aplicativos. Assim, só poderão aumentar o escrutínio sobre as políticas públicas e o interesse de todos por soluções para necessidades tão centrais de uma sociedade em rápida transformação.
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Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercado do Banco Safra. Foi ministro da Fazenda e diretor-gerente do Banco Mundial.