Construção civil aumenta salários e adota novas tecnologias para atrair os mais jovens

em O Globo, 2/fevereiro

Aquecido, setor investe em capacitação e ‘linhas de produção’ com pré-moldados para enfrentar gargalo de mão de obra, que tem, em média, 41 anos.

O setor de construção civil, um dos que mais empregam no país, com 2,9 milhões de trabalhadores formais, vive o desafio de rejuvenescer. Com idade média dos trabalhadores de 41 anos, as construtoras tentam acelerar a digitalização e a industrialização dos canteiros de obras, além de oferecer salários mais altos, para atrair os jovens e, especialmente os mais qualificados, principal gargalo do segmento neste momento em que as vendas de imóveis novos batem recordes consecutivos. Algumas empresas do ramo até criaram escolas para treinar interessados e evitar atrasos na entrega dos imóveis.

— Com a economia aquecida e o desemprego no menor patamar histórico (6,6% em 2024), o desafio da construção civil é atrair, treinar e reter mão de obra. Este é o principal limitador dos negócios e preocupação central das empresas, segundo nossa sondagem — diz Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos de Construção do FGV/Ibre.

Fábrica vira escola

Lucas Moura, gerente de Gente e Gestão da Tenda, conta que a construtora teve de criar, em 2023, uma “fábrica-escola” nos canteiros para ensinar funções como acabamento, pintura e instalação de cerâmica, entre outras, como forma de profissionalizar jovens e atraí-los para a carreira. Os alunos se tornam aprendizes e podem ser efetivados. Foram treinadas 151 pessoas até dezembro do ano passado.

— Um dos principais resultados foi a reposição rápida de colaboradores, com impacto mínimo na linha de produção, pois o turnover (rotatividade nos postos de trabalho) ocorre dentro da escola, e não diretamente nas obras — diz Moura.

Outra forma de treinar profissionais é o programa de refugiados nos canteiros, lançado na pandemia, para contratar venezuelanos acolhidos em abrigos em Roraima após cruzarem a fronteira. O programa cresceu e atraiu pessoas de outros países, como Angola e Haiti. Matuvanga Mputu, de 41 anos, é um deles. Vindo de Angola em 2021, ele ficou num albergue em São Paulo por 8 meses, com dificuldades para encontrar emprego formal.

— Eu não era do setor, mas recebi treinamento na escola-fábrica e acabei sendo efetivado. Quero seguir carreira e chegar a analista — diz ele, que deixou a mulher e quatro filhos em Angola e deseja trazê-los no futuro, quando se firmar no setor.

Fábio Gato, gestor de Qualidade e Segurança do Trabalho na construtora Vinx, conta que processos burocráticos nas construções, que “usam papel”, têm sido digitalizados. As conferências de serviços executados nas obras e até mesmo da chegada de material nos canteiros, por exemplo, já são feitas com tablets e aplicativos no celular.

Com isso, a informação fica disponível quase que instantaneamente para engenheiros de obras, que otimizam o cronograma, evitam atrasos e aproveitam as habilidades dos jovens com a tecnologia. O executivo conta que estagiários que trabalham com esses engenheiros já questionam se esses serviços foram digitalizados e se existe uso de escaneamento de dados antes de aceitar a vaga.

— Ninguém quer andar com pilhas de papel. E economizamos até 80% do tempo que gastávamos com impressões e no recebimento de material — explica Fábio Gato, acrescentando que a construtora também está criando uma universidade corporativa para oferecer treinamento.

O Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) revisou a sua previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do setor de 3,4% para 4,4% para 2024, o que significa que o segmento está aquecido e deve abrir mais vagas este ano. Uma das frentes em aceleração é a do programa Minha Casa, Minha Vida, que foi turbinado pelo governo federal.

200 mil vagas em 2024

Segundo dados do Sinduscon-SP, foram criadas mais de 200 mil vagas formais na construção civil em 2024. Ainda assim falta gente. A escassez de mão de obra nos canteiros acaba obrigando as empresas a elevar os salários, o que é bom para os trabalhadores em um setor historicamente conhecido por baixa qualificação e remuneração na informalidade. Por outro lado, o custo mais alto da força de trabalho tem se refletido no Índice Nacional de Custo da Construção (INCC), que acompanha a variação dos preços nesse segmento, e acaba elevando o valor final dos imóveis. O índice subiu 6,34% entre janeiro e dezembro de 2024.

Dados do Grupo de Trabalho de Recursos Humanos (GTRH) do Sinduscon-SP mostram que salários mais altos têm sido um dos instrumentos das construtoras para reter e atrair trabalhadores. Nos postos formais da construção civil, os empregados ganham R$ 3.661 mensais, em média, já acima da indústria (R$ 3.571). Mas há construtoras que remuneram funcionários por produtividade, com o salário podendo chegar a R$ 7,5 mil. Os mais qualificados têm mais chance de conquistar as melhores vagas.

— É preciso capacitar pessoas, usar inteligência artificial (IA) para ganhar produtividade e atrair mais mulheres para o setor, que atualmente representam apenas 12% da mão de obra em São Paulo e 6% na média nacional — observa Ana Maria Castelo, do FGV/Ibre.

O Sinduscon-SP em parceria com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo está formatando um curso técnico de edificações, que deve começar em 2026. O presidente da entidade, Yorki Estefan, também quer incentivar o aumento da produtividade via industrialização dos canteiros, mas observa que essa transformação não se faz no curto prazo. Ele observa também que apenas 26% das pessoas que trabalham no setor têm carteira assinada, mantendo ainda a alta informalidade do setor. Para ele, é preciso discutir se a CLT é o melhor caminho para atrair essa mão de obra:

— Há visão de empreendedorismo disseminada, muitos preferem ser informais.

Nos canteiros da Tenda, por exemplo, os empregados já trabalham como numa “linha de produção de apartamentos” industrializada. A empresa criou um Centro de Distribuição e Transformação (CDT) de materiais, que são enviados para as obras apenas quando necessário (como no modelo industrial just in time, para uso imediato em vez de grandes estoques).

Uma parte do material chega em kits com peças prontas para serem instaladas nas unidades, como ramais de esgoto e água ou conjuntos de esquadrias, por exemplo. Isso reduz a área necessária para armazenamento nas obras, além de eliminar um dos piores inimigos da construção: o desperdício de material. Esse processo também permite que trabalhadores sejam remanejados de uma obra para outra sem “distúrbios” no processo.

— São Paulo já tem avançado na agenda de industrialização (na construção), e ela tende a avançar no restante do país com as discussões de sustentabilidade — diz Ana Maria, da FGV.

Reforma tributária ajuda

Eduardo Zaidan, vice-presidente de Economia do Sinduscon-SP, diz que a tributação atrapalhou a industrialização da construção civil no Brasil, onde se cobra do setor ICMS e IPI sobre materiais pré-moldados produzidos fora dos canteiros de obras, encarecendo o custo total. A reforma tributária equaliza essa questão e será outro fator em favor dessa tendência.

— Há custos maiores no processo de industrialização do setor. Por isso, não foi para a frente aqui como no resto do mundo — diz Zaidan.


Ver online: O Globo