Como a arquitetura está se moldando ao aquecimento global

em Valor, 9/fevereiro

Residências com iluminação natural e ventilação cruzada, além de construções a seco, que quase não fazem uso de cimento e argamassa, são algumas das soluções propostas por arquitetos.

“É impossível imaginar, no Brasil, um canteiro de obras sem uma caçamba na frente”, diz o arquiteto paranaense Guilherme Torres. “O país se habituou a construir e a gerar, ao mesmo tempo, uma enorme quantidade de entulho.” Refere-se, principalmente, à adesão generalizada à alvenaria e à tradição nacional de abrir talhos em blocos e tijolos para permitir a passagem de conduítes e tubulações.

“Os métodos construtivos mais disseminados no país se traduzem em taxas de desperdício que oscilam entre 20% e 30%”, acrescenta Torres, cujo escritório de arquitetura, fundado em 2001, está localizado no bairro paulistano de Pinheiros.

O setor, no país, ainda está longe dos padrões mais avançados de sustentabilidade. Mas exceções não faltam. É o caso da Jatobá, uma casa de 583 m2 projetada por Torres. Situada na Fazenda Boa Vista - o incensado condomínio erguido pela JHSF em Porto Feliz, a 100 km da capital paulista -, ela foi construída com placas de madeira entrelaçadas e prensadas em alta temperatura.

Também chamado de CLT, na sigla em inglês, o material forma a laje e toda a estrutura, que foi montada em duas semanas, com a ajuda de guindastes. Não foi feita uma fundação estrutural, só uma base de concreto. “Só isso diminuiu o tempo de obra em três meses”, gaba-se o arquiteto. “E reduziu os custos em 30%.”

Entregue em 2021, a casa é parcialmente cercada por muros feitos de terra compactada. Torres recorreu à taipa de pilão, técnica prosaica que está caindo nas graças de arquitetos badalados, para diminuir o impacto da obra. Explica-se: o material utilizado é fruto da terraplanagem. “Foi uma solução para evitar o transporte de terra para outro local, o que implicaria o uso de caminhão e a emissão de mais poluentes”, resume o autor do projeto.

Ele afirma que as chamadas construções a seco, as que quase não fazem uso de cimento e argamassa, custam praticamente o mesmo que as tradicionais. “Já houve uma discrepância similar à que existe, hoje em dia, entre carros a combustão e os elétricos”, compara. “Mas ela ficou no passado.”

Na Jatobá, ele se preocupou em favorecer ao máximo a iluminação natural e a ventilação cruzada - pensando, como é de imaginar, no aquecimento global. A casa se resume a cinco grandes blocos interligados por corredores praticamente sem paredes. Os dois conjuntos de salas, cada um, dispõem só de duas paredes. No lugar das que não foram erguidas, ele instalou janelões do chão ao teto, de uma ponta à outra, que só costumam ser fechados quando chove muito.

Placas que captam a energia solar também foram incluídas no projeto e os dois lagos que margeiam a residência não têm fins meramente estéticos: fazem parte do sistema de reúso de água. “Na arquitetura, soluções em prol da sustentabilidade sempre foram as mais lógicas”, argumenta Torres. “Mas elas ainda não são adotadas em grande escala no Brasil.”

Para um terreno no município de Camanducaia, em Minas Gerais, ele projetou um hotel formado por 60 “lodges” que remetem a casas nas árvores. Também dispensam fundação estrutural e estão sendo construídos com madeira reflorestada, que contrasta com as paredes de pedras e as telhas metálicas. Com inauguração prevista para este ano, o hotel será chamado de Montes Verdes Lodges.

Com o aquecimento global cada vez mais evidente mundo afora, aumenta a responsabilidade dos arquitetos em apresentar soluções para melhorar nosso convívio com as mudanças climáticas. Como está ficando claro, o efeito estufa não resultará só em derretimento de icebergs na Antártida ou em queimadas no Cerrado brasileiro - também impactará, e como, o dia a dia das grandes cidades.

Um relatório encomendado pela Prefeitura de Londres divulgado em janeiro alertou para o risco de a cidade estar sujeita a “ondas de calor mais intensas e frequentes, chuvas mais intensas, inundações repentinas e aumento do nível do mar”.

Cidades portuárias urbanas correm o risco de ficar cada vez mais inundadas nas próximas décadas. É o que sugere o ranking da Nestpick, uma plataforma de aluguel de apartamentos mobiliados, que calcula qual é a probabilidade de grandes metrópoles serem impactadas pelo aumento do nível do mar em 2050 e qual deverá ser a temperatura média de cada uma, entre outras projeções. O primeiro lugar pertence à capital da Tailândia, Bangkok, onde 5 milhões de habitantes, segundo a OCDE, poderão estar expostos a inundações na década de 2070.

Em seguida, aparecem no ranking as cidades de Ho Chi Minh (Vietnã), Amsterdã (Holanda), Shenzhen (China), Melbourne (Austrália), Cardiff (Reino Unido), Seul (Coreia do Sul), Boston (EUA), Nairobi (Quênia) e Marrakech (Marrocos). A única cidade brasileira da lista é o Rio de Janeiro, em 83º. Em 2050, estima a Nestpick, a temperatura média na capital carioca será de 24,53°C, quase 1°C a mais do que hoje em dia - não estamos falando, convém lembrar, das máximas apocalípticas registradas nos últimos tempos.

Segundo o C40, associação de quase 100 prefeituras globais unidas para enfrentar a crise climática, 1,6 bilhão de pessoas que residem em cerca de mil cidades - ou 40% da população mundial - vão enfrentar ondas de calor extremas e regulares em, no máximo, 30 anos. Atualmente, calcula a mesma entidade, 200 milhões de habitantes de mais de 350 cidades convivem com temperaturas máximas de 35°C. Até 2050, cerca de 970 cidades vão enfrentar a mesma coisa.

Além dos inevitáveis impactos na saúde da população - mais de 1.300 pessoas morrem por ano por culpa do calor extremo nos Estados Unidos -, haverá reflexos econômicos. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho estima que a redução da produtividade provocada pelo calorão deverá representar um prejuízo global de US$ 2 trilhões até 2030. As inundações e as secas provocadas pelo aquecimento global, estima o C40, poderão obrigar as principais cidades do mundo a gastar US$ 194 bilhões por ano em conjunto.

Para diminuir os problemas, a entidade preconiza o óbvio: ampliação de áreas verdes e lagos, além de telhados que ajudem a absorver o calor. Seul é uma das cidades que soube correr atrás do prejuízo. Depois das ondas de calor que registrou nos anos 1990, a capital lançou uma campanha com o intuito de plantar 3 milhões de árvores. No fim, plantou 16 milhões até 2002, quando o projeto foi encerrado. Ele expandiu a área arborizada da cidade em 3,5 milhões de m. Um aterro sanitário deu lugar a um dos parques criados pela iniciativa.

“Há muitos arquitetos interessados em implantar soluções para mitigar o aquecimento global e o impacto no meio ambiente”, afirma Douglas Tolaine, sócio do escritório americano Perkins&Will, que mantém uma unidade em São Paulo desde 2012. “O grande desafio, porém, é convencer os clientes da importância disso.” As recusas se devem, geralmente, no caso de edifícios e projetos mais populares, aos custos envolvidos - só no segmento de luxo, ao que parece, não se nota tanta diferença entre os valores das opções mais sustentáveis e as de sempre.

Tolaine afirma, no entanto, que empreendimentos menos nocivos ao meio ambiente costumam registrar boas taxas de valorização. Cita um dos projetos assinados pelo escritório, o Oscar Ibirapuera. Nos arredores do parque mais conhecido de São Paulo, ele foi revestido de brises-soleils de madeira, que amainam o sol e ajudam a diminuir a dependência do ar-condicionado. “Incluir soluções do tipo equivale a transformar um pedaço de tecido em uma peça de alta costura”, compara o sócio do escritório. Os apartamentos foram comercializados a cerca de R$ 35 mil o metro quadrado - R$ 15 mil a mais do que o previsto inicialmente.

Com conclusão prevista para 2026, o Biosquare também foi projetado pela Perkins&Will. Na rua dos Pinheiros, terá só um subsolo, algo raríssimo para um espigão de 19 andares. Em vez de escavar o solo profundamente para construir as garagens, como é de praxe em empreendimentos do tipo, o escritório decidiu concentrá-las acima do térreo. Os andares destinados aos carros, no entanto, terão o mesmo pé-direito que os demais, o que também não é comum - para economizar, as incorporadoras costumam preferir garagens mais baixas.

O Biosquare só terá pavimentos da mesma altura - e só um deles abaixo da terra - para diminuir o impacto da obra e para que as garagens possam ser transformadas, no futuro, em escritórios, caso haja interesse. “É de supor que a demanda por automóveis caia bastante daqui 30 ou 40 anos, o que já estamos prevendo”, explica Tolaine.

Na altura das garagens suspensas, a fachada será coberta por elementos amadeirados e jardins. E haverá canteiros pendentes contornando quatro dos andares corporativos. Trata-se de um prédio espelhado, mas os caixilhos das janelas não serão travados - um aceno para as raras empresas que optarem pela ventilação natural.

Para um edifício residencial em Ubatuba, na rua da praia, o Perkins&Will propôs outro tipo de ousadia: revestir a fachada com brise-soleils de bambu, também utilizado para adornar o muro e as portas dos “shafts”, ou dutos, entre outros elementos. “É um material da natureza, de baixo custo e que nunca deixa de capturar carbono”, festeja Tolaine. “Achamos que a incorporadora que nos contratou poderia ‘gongar’ a ideia, mas ela foi bem aceita.” Batizado de Bambu, o prédio foi lançado em 2018 custando R$ 13 mil o metro quadrado - cerca de R$ 5 mil a mais do que os empreendimentos mais caros na região.

O surgimento de novos materiais construtivos tem ajudado os arquitetos a criar projetos mais aclimatados aos tempos atuais. Conhecida por projetar edifícios de luxo com fachadas de tijolinhos aparentes - cuja instalação demanda uma enormidade de tempo e trabalho -, a PSA Arquitetura acaba de aderir a uma solução com mais de uma vantagem. Falamos dos painéis pré-fabricados da Stamp, uma companhia de Barueri, na Grande São Paulo. Com cerca de 6,6 metros de altura, eles imitam diversos materiais, inclusive os famosos tijolinhos.

O PSA optou pela réplica dos tijolinhos para compor boa parte da fachada do Lindenberg Praça Itaim. Trata-se de um empreendimento residencial no bairro de mesmo nome com duas torres de 31 andares - a entrega está prevista para o segundo semestre. “Optamos por esses painéis porque a qualidade é altíssima”, afirma Christiani Longato, uma das sócias do escritório paulistano. Para montar as bases das varandas, optou-se também por painéis pré-fabricados - estes imitam granilite.

Com a solução adotada, as obras foram encurtadas em quatro meses. Os painéis, que também ajudam a diminuir o desperdício, permitiram a criação, em conjunto com paredes de drywall, de uma camada de ar ao redor de todo o prédio. “Ela ajuda a manter os apartamentos a salvo do calor de fora”, explica Longato, que pretende adotar os tais painéis em empreendimentos futuros.

Às voltas com a construção de um empreendimento residencial em Porto das Dunas, no Ceará, o Mandara by YOO, a incorporadora Marquise se aliou a uma startup de Minas Gerais para desenvolver um piso intertravado mais sustentável. O complexo, cujas entregas deverão começar em agosto de 2025, se espalha por um terreno de 115 mil m2. E terá mais de 26 mil m2 de piso intertravado - envolve desde a pista de cooper até os passeios entre as edificações e as pistas dos carros.

A solução desenvolvida: blocos que levam pneus descartados na receita. “No Mandara by YOO, vamos contribuir com a reciclagem de 2.300 toneladas de pneus”, diz Andréa Oliveira, diretora de incorporação da Marquise. “Queremos adotar o mesmo tipo de piso nos empreendimentos que vierem pela frente e ajudar a desenvolver mais tecnologias sustentáveis.” O complexo é uma parceria da Marquise com a Cyrela e o YOO Studio, do arquiteto e designer francês Philippe Starck.

E há novidades bem mais disruptivas no mercado. Fundada em Hong Kong em 2021, a startup i2Cool desenvolveu um revestimento com nanopartículas para paredes externas que reflete 95% da radiação solar - e reduz consideravelmente a necessidade de refrigeração e ventilação interna. Cada metro quadrado aplicado, segundo a companhia, diminui o consumo de eletricidade em até 430 quilowatt-hora e reduz as emissões de carbono em 250 quilos por ano. A novidade já foi aplicada em mais de 53 mil m2 de paredes e ajudou a poupar 1 milhão de kWh e a evitar a emissão de quase 900 mil quilos de carbono.

Já os chamados vidros inteligentes dispõem de nanopartículas controladas eletricamente. Para ajudar a reduzir o uso de lâmpadas e ar-condicionado, eles mudam de cor em instantes para barrar a entrada de luz em excesso e de raios infravermelhos. Segundo a americana Nodis, uma das maiores fabricantes, prédios que optam por vidros do tipo gastam até US$ 1 milhão a menos por ano com energia.

Fundada em 2019, a startup inglesa Thermulon criou outro produto que ajuda a diminuir a dependência de aquecedores e ar-condicionado. Trata-se de um aerogel altamente isolante e resistente ao fogo. Vendido em pó, o material pode ser adicionado na receita de rebocos e painéis, tornando as construções mais seguras e mais eficientes do ponto de vista térmico.

O intuito da Prometheus Materials é diminuir a dependência global de cimento. A produção dele, que envolve a queima do calcário com a argila, responde por quase 8% das emissões globais de CO2. É um percentual que só tende a aumentar: até 2060, a quantidade de construções sobre a Terra deverá dobrar. Registre-se que 39% das emissões de carbono são atribuídas à construção e ao dia a dia dos prédios, segundo o World Green Building Council.

Fundada em 2021, a Prometheus Materials confecciona blocos e painéis de concreto com a ajuda de cianobactérias mineralizantes, também chamadas de algas azuis. Esses microrganismos, não tóxicos, são cultivados com luz solar, água do mar e CO2. Dão origem a uma substância capaz de unir areia com cascalho ou pedra - com a vantagem de retirar CO2 da atmosfera, em vez de adicionar mais. Uma das companhias que investiu na startup, cuja sede fica no Colorado, nos Estados Unidos, é a Microsoft.


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