Minha Casa Minha Vida muda de perfil e alcança classe média

em Valor Econômico, 25/outubro

Após 15 anos, maior expansão do programa se dá na faixa de renda de R$ 4,4 mil a R$ 8 mil.

Nos últimos 15 anos, o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) passou por uma série de ajustes para se adequar à deterioração das contas públicas e ao impacto da escassez de funding dos bancos para financiamentos imobiliários. Com isso, o programa idealizado para reduzir o déficit habitacional, especialmente para a baixa renda, tem operado cada vez mais com a classe média.

Esse movimento é nítido nas operações do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) que atendem ao MCMV. Apesar de o número de contratos estar aumentando em todas as faixas de renda nas cinco regiões do país, a maior expansão ocorre justamente no público com renda entre R$ 4,4 mil e R$ 8 mil.

De janeiro a julho, as contratações para famílias nesse estrato de renda praticamente dobraram na comparação com o mesmo período de 2023. Por outro lado, as operações feitas com a faixa 1 (que tem como foco famílias com renda de até R$ 2.640) subiram 27,74%, e as com a faixa 2 (renda entre R$ 2.640 e R$ 4.400), 23,82%.

Esse levantamento foi feito pelo Valor com base em números repassados pelo Ministério das Cidades. Considerando por unidade da federação, apenas o Amapá apurou queda nas contratações em relação a 2023. Esse resultado decorreu da redução de 44% e 64% nas contratações faixas 1 e 2, respectivamente, já que houve uma alta de 300% na faixa 3. Os dados do FGTS mostram ainda expansão de empréstimos para atendimento de famílias com renda superior a R$ 8 mil, que estão fora do MCMV.

O ministro das Cidades, Jader Filho, disse ao Valor que não houve mudança de foco no MCMV, ou seja, a prioridade continua sendo a baixa renda. Ele argumentou que, diferentemente de quando foi lançada, a faixa 1 hoje é atendida por duas modalidades: a subsidiada, que é integralmente bancada pelo Orçamento público; e a financiamento com recursos do FGTS.

A meta do programa é contratar 2 milhões do moradias até o fim de 2026. A ideia é que metade dessas unidades seja voltada para famílias da faixa 1, sendo 500 mil unidades na linha subsidiada e pelo menos 500 mil na linha financiada do programa. O ministério já atingiu a marca de um milhão de contratações. No faixa 1 bancado pela União, a ideia é fechar este ano com 140 mil unidades contratadas.

“No caso dos financiamentos, é dado subsídio para faixa 1 e 2 e não há subsídio para a faixa 3”, afirmou. Segundo o ministro, de 2019 para cá, foram feitos vários aprimoramentos como redução dos juros dos financiamentos e a oferta de uma taxa menor para as regiões Norte e Nordeste. Além disso, foi criado o FGTS Futuro, que permite que o trabalhador utilize créditos futuros do fundo para pagamento de parte das prestações e para amortizar estoque de financiamento habitacional.

Para o ministro, a aceleração das contratações da faixa 3 com recursos do FGTS pode ser explicada pela escassez de crédito do funding da caderneta de poupança. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, anunciou recentemente restrição ao crédito devido à falta de recursos e estuda medidas para amenizar o problema em 2025. “Não tem alternativa no mercado e a classe média correu para o MCMV”, afirmou Jader Filho.

Uma medida que contribuiu para a expansão das contratações do faixa três foi a aprovação, em junho do ano passado, o aumento do teto do valor do imóvel no Minha Casa, Minha Vida, de R$ 264 mil para R$ 350 mil. A medida passou a valer para todo o país para famílias enquadradas na faixa 3 (renda entre R$ 4,4 mil e R$ 8 mil) - antes dependia da localidade.

Um técnico do governo concorda com o ministro de que o foco do programa continua sendo a baixa renda e diz que é preciso “olhar o filme e não a foto”. “As condições de financiamento melhoraram”, ressaltou, acrescentando ainda que hoje não só o Executivo como também governos estaduais e municipais concedem subsídios para ajudar a alavancar as operações do faixa 1 subsidiado. Ou seja, somando os subsídios do governo federal com o de Estados e municípios fica mais fácil para a família de menor renda conseguir a entrada necessária para conseguir um financiamento com recursos do FGTS.

Para a ex-secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades e representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI) no Grupo de Apoio Permanente no FGTS, Henriqueta Arantes, houve desvirtuamento ao longo dos anos. No governo Lula, a necessidade de cumprir metas de contratação fez com que algumas regras fossem flexibilizadas facilitando o acesso de mais famílias a faixa 3.

Neste ano, o governo apertou as regras de financiamento de usados por famílias com renda entre R$ 5,5 mil e R$ 8 mil nas regiões Sul e Sudeste para focar na ampliação de usados pelas famílias de menor renda. Na ocasião o ministério informou que, diante do aumento da oferta de unidades habitacionais novas, as medidas iriam calibrar a participação dos usados na carteira das faixas com maiores rendas: o faixa 3 (famílias com renda entre R$ 4,4 e R$ 8 mil) e o programa Pró Cotista, com foco em rendas superiores a R$ 8 mil.

Ainda em agosto, foi ampliado o valor da renda das faixas 1 e 2, que passaram de R$ 2.640 para R$ 2.850 e de R$ 4.400 para R$ 4.700, respectivamente. Além disso, as taxas de juros para famílias com renda mensal de até R$ 2 mil foram reduzidas em 0,25%, independentemente da localidade. Para as regiões Norte e Nordeste, a taxa passa de 4,25% para 4% ao ano - nas demais, de 4,5% para 4,25%. A expectativa do governo é de que os ajustes se reflitam gradualmente num ritmo maior de contratações de financiamento pela população de menor renda. “Houve um estímulo, com o aumento do teto e falta de restrição para aquisição de usados”, destacou Henriqueta, acrescentando que as medidas recentes poderão contribuir para intensificar as operações com o faixa 1 e conter o ímpeto da faixa 3.

O presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Renato de Sousa Correia, afirmou que o MCMV passou por um processo de amadurecimento ao longo dos anos. Ele cita como exemplo o MCMV-Cidades, que estimula Estados e municípios a conceberem subsídios. Ele demonstrou preocupação com a capacidade do FGTS manter a expansão do crédito imobiliário no médio e longo prazos devido ao forte volume de saques causados pela modalidade saque-aniversário.

Em 2009, o programa foi lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com meta de garantir 1 milhão de moradias em quatro anos para famílias com renda até dez salários mínimos.

Durante os anos, a faixa 1 praticamente foi esquecida pela falta de recursos orçamentários e necessidade de destinar recursos para retomar e finalizar obras paradas. O cálculo da renda dos beneficiados pelo MCMV deixou ser vinculado ao salário mínimo. Atualmente, podem ser contempladas famílias com renda de até R$ 8 mil.

No governo Jair Bolsonaro, o programa foi batizado de Casa Verde Amarela. Na época, houve paralisação das contratações do faixa 1 pois a prioridade era entregar e finalizar de obras paradas. Com o retorno de Lula à Presidência, o programa voltou a se chamar Minha Casa, Minha Vida. Além disso, houve uma ampliação das operações que contemplam um mix entre subsídio e financiamento para o público de menor renda.

Em 2009, o alvo do programa era reduzir o déficit habitacional de 7,2 milhões de moradias em 14%. Na época, 90,9% do déficit estava concentrado na faixa de renda até três salários mínimos. Da meta de 1 milhão de unidades, 400 mil eram para atender esse público.

Neste ano, a Fundação João Pinheiro, instituição responsável pelo cálculo do déficit habitacional do Brasil em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, divulgou que, em 2022, o déficit habitacional no Brasil foi estimado em 6,2 milhões de domicílios e tem predominância em domicílios com até dois salários mínimos de renda (R$ 2.640), prioritariamente aqueles da faixa 1 do Minha Casa Minha Vida (74,5%).

A atualização dos dados para o ano de 2022 teve como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico).


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