Prefeitura do Rio planeja derrubada do Elevado Trinta e Um de Março, que liga o Centro à Zona Sul
em O Globo, 8/dezembro
Como no caso da Perimetral, um dos maiores desafios indicados por especialistas deve ser o planejamento do trânsito durante as obras.
Depois da derrubada do Elevado da Perimetral, na década passada, marco da transformação urbanística de uma Zona Portuária até então esquecida, o prefeito Eduardo Paes decidiu apostar em novo bota-abaixo para revitalizar mais uma área da cidade. O plano agora é demolir o Elevado Trinta e Um de Março, que desde sua primeira inauguração em 1977 tem papel fundamental na ligação entre a Zona Sul e o Centro. Sem a estrutura de dois quilômetros de extensão, o Sambódromo será o destaque da região e o abre-alas para reabilitar a vocação de bairro residencial do Catumbi.
Pelo projeto, o trânsito passará a escoar por uma nova via, no mesmo trajeto do elevado e ao nível do chão: o Boulevard do Samba, que terá calçadas largas e lojas comerciais. Paralela à Marquês de Sapucaí, ela cruzará a movimentada Avenida Presidente Vargas e, por um novo mergulhão de 350 metros sob a linha férrea, chegará ao Santo Cristo. E, assim como no caso da Perimetral, um dos maiores desafios indicados por especialistas deve ser o planejamento do trânsito durante as obras, que ainda não têm data para começar, e depois delas.
Com sinais de trânsito
Hoje, cerca de 80 mil veículos passam todos os dias pelo elevado, que não tem qualquer sinal de trânsito. O Boulevard do Samba não deverá ter esse conceito de via expressa, já que cruzará as ruas Frei Caneca e Salvador de Sá, assim como a Presidente Vargas.
O novo projeto é divulgado mais de uma década após a capacidade do Sambódromo ser ampliada de 60 mil para 75 mil pessoas em 2012, com a demolição da antiga fábrica de uma cervejaria e a construção de novos camarotes no lado par. A obra também fazia parte dos preparativos para a Sapucaí receber as provas de tiro com arco e a maratona na Olimpíada de 2016.
Agora, a configuração do palco do carnaval deve mudar mais uma vez. A mais importante intervenção acabará com o pesadelo de qualquer carnavalesco cuja escola se concentra do lado do edifício Balança Mas Não Cai: a hipótese de os carros alegóricos, cada vez mais altos, ficarem presos sob o Trinta e Um de Março. Para facilitar ainda mais a entrada dessas estruturas na Sapucaí, está prevista a realocação do prédio do Juizado da Infância e Juventude, que fica na esquina da Rua Afonso Cavalcanti. Assim, a entrada da Avenida ficaria mais larga na altura do Setor 1. Há outras mudanças previstas.
— Queremos integrar mais a Sapucaí com o entorno. Atrás das arquibancadas, nos dois lados, teremos prédios com lojas voltadas para a rua, no primeiro piso. No andar superior, funcionariam bares e outros serviços para o público do Sambódromo. Teríamos também uma instalação de apoio depois da Apoteose, onde ficariam as áreas administrativas, e um centro de mídia — detalha o arquiteto Rodrigo Azevedo, autor do projeto.
Projeto vai para a Câmara
O secretário de Integração Governamental, Jorge Arraes, disse que o próximo passo caberá à Companhia Carioca de Parcerias e Concessões (CCPAR), que vai detalhar e modelar a engenharia financeira e o cronograma da fase inicial do projeto. Para viabilizar o plano, a Câmara Municipal terá que aprovar o que é conhecido na legislação urbanística como Operação Urbana Consorciada — instrumento que visa a transformar áreas degradadas por meio de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada. O Executivo pretende mandar esse texto ao Legislativo ainda em 2025.
Nesse projeto, a prefeitura definirá os parâmetros urbanísticos para o entorno do Sambódromo, que deverão ser estabelecidos em diálogo com os moradores da vizinhança, onde há uma série de imóveis tombados. Também será detalhada a origem dos recursos para tirar essas ideias do papel: o dinheiro viria da negociação de terrenos que vão surgir com a derrubada do elevado. Nessas áreas públicas, empreendedores poderão construir prédios residenciais.
Nos estudos apresentados pela prefeitura, Rodrigo Azevedo sugere um gabarito de sete pavimentos para a região do Catumbi.
— Estudos indicam que nesses lotes públicos possam ser construídas até 12 mil unidades, se a média das unidades for de 60 metros quadrados. Isso pode render em vendas pelos investidores algo entre R$ 5 bilhões e R$ 7 bilhões. A área é de fácil acesso: vai dialogar com a região do Porto Maravilha e é bem servida de transporte público — diz o arquiteto.
A exceção será um prédio com cem metros de altura na Presidente Vargas, na pista no sentido da Zona Norte, bem em frente à Marquês de Sapucaí. A ideia é fazer uma torre residencial com lojas na base, inspirada no desenho do Congresso Nacional. Seria uma homenagem ao arquiteto Oscar Niemeyer, que projetou o Sambódromo nos anos 1980, assim como o prédio do Legislativo em Brasília.
Responsável também pelo plano de restauração da antiga Estação da Leopoldina, na Avenida Francisco Bicalho, Azevedo apresentou o projeto a Paes e ao vice-prefeito eleito, Eduardo Cavaliere, na semana passada, em uma reunião da equipe de transição.
— O Sambódromo é um marco e, com esse projeto, será ainda mais valorizado. O plano não prevê desapropriações. Vamos ainda fechar um cronograma — diz Cavaliere.
Embora prefira não divulgar datas, a prefeitura avalia que a execução desse projeto seria mais fácil que a do Porto Maravilha, quando a Perimetral foi demolida e foram construídos dois túneis, a Via Binário e o Boulevard Olímpico.
— Em termos de complexidade, essa é uma área mais fácil de fazer certas intervenções. No Porto Maravilha, as obras ocorreram em uma área de cinco milhões de metros quadrados. No entorno do Sambódromo, o total chega a 700 mil metros quadrados — pondera Jorge Arraes.
Os números do projeto:
80 mil: Número de veículos que passam por dia pelo Elevado Trinta e Um de Março, que liga o Santa Bárbara ao Santo Cristo
12 mil: Quantidade de unidades residenciais que estão previstas no entorno da nova via, o Boulevard do Samba
700 mil m²: É a área que o novo projeto da prefeitura vai abranger com a derrubada do elevado e a construção de residenciais e da nova via
High Line carioca
Da estrutura original do elevado, restaria apenas um trecho de 150 metros, entre a Presidente Vargas e o Santo Cristo. A ideia é criar uma versão reduzida da High Line, de Nova York, espaço de lazer em elevados desativados. Pelo projeto da prefeitura, a nova área será integrada a praças vizinhas: a Noronha Santos e a General Pedra, hoje pouco frequentadas, mas que poderiam se tornar opções para os novos moradores de todo o Centro.
O projeto prevê ainda a criação de um calçadão de 5,9 quilômetros, o Caminho das Lanternas, que passará pela Leopoldina, o futuro estádio do Flamengo, o bairro do Santo Cristo e o Sambódromo, até voltar à antiga estação. Outro destaque é uma casa de espetáculos onde hoje fica o Terreirão do Samba, o que conflita com um projeto em andamento na própria prefeitura. Uma licitação em setembro escolheu uma empresa para administrar o espaço por 25 anos. Arraes diz que esse contrato pode ser revisto porque ainda não foi assinado.
O principal foco desse novo projeto é a derrubada do Elevado Trinta e Um de Março, que começou a ser construído nos anos 1960. O projeto do arquiteto grego Constantino Doxiadis, contratado pelo então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965), causou grande impacto no Catumbi, onde houve muitas desapropriações. Doxiadis criou o plano das linhas policromáticas. O elevado fazia parte da Linha Lilás, que deveria ligar Botafogo ao Gasômetro, mas ficou incompleta. Desse plano, saíram do papel as linhas Amarela e Vermelha.
Especialistas avaliam impacto que intervenções vão causar na região
Os planos da prefeitura para a região que vai do Catumbi à Praça Onze surpreenderam especialistas em trânsito, arquitetura e urbanismo. Sobrinho e ex-colaborador de Oscar Niemeyer, criador do Sambódromo, o também arquiteto João Niemeyer considera a proposta interessante e ousada. Ele defende que um dos focos do projeto se concentre em avaliar os intervalos de sinais de trânsito do entorno, que precisariam de uma série de alterações após a demolição da via expressa.
— A construção dessas estruturas era uma solução para o tráfego nos anos 1960, 1970. Elevados dividem os bairros, causando desvalorização do entorno. Hoje, o conceito é de integração. Bem executada, a ideia pode dar certo — disse.
O arquiteto Washington Fajardo, que foi secretário de Planejamento Urbano do Rio, também ressaltou o fato de o Trinta e Um de Março ser de um tempo em que se valorizava mais o trânsito:
— O elevado foi construído numa época de cultura rodoviarista, que prejudicou a vocação residencial do Catumbi ao segregar o bairro. Esse plano de fato deve integrar mais o Sambódromo à região. Mas o curioso é que na época em que foi construído, o próprio Sambódromo também prejudicou o entorno, quando bloqueou ruas que antes serviam de ligação entre o Catumbi e Santa Teresa.
O professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ, Ronaldo Balassiano, considera a proposta tecnicamente mais desafiadora do que a demolição do Elevado da Perimetral:
— A Perimetral em extensão é muito maior, e sua demolição foi um tiro certeiro que ajudou na revitalização da Zona Portuária, mas não se encontrava no coração da cidade como o Trinta e Um de Março. Ali, os impactos no trânsito podem ser bem maiores.
Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, centro de estudos e pesquisas em logística e mobilidade, tem ressalvas ao projeto:
— É preciso, antes de qualquer coisa, ter um estudo técnico aprofundado e fazer simulações para comprovar que essa mudança realmente suportará o volume de trânsito absorvido pelo elevado. E, durante as intervenções, ter um plano de contingência efetivo. A demolição da Perimetral deu certo, mas, na época das obras, houve transtornos e havia vias alternativas para os motoristas se deslocarem.
Melhor opção seria o metrô
Licínio Machado Rogério, do Fórum de Mobilidade Urbana, é radicalmente contrário ao projeto:
— Seria jogar dinheiro fora. O que a cidade precisa mais é de metrô, como a conclusão da ligação entre estações Carioca e Estácio, o que atrairia mais demanda para o sistema. O prefeito pode argumentar que a tarefa não é da prefeitura, mas, se tiver vontade política, executa.
O impacto no entorno do novo projeto preocupa outro ex-secretário de Urbanismo, Augusto Ivan, autor de estudos que deram origem às Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (Apacs) no Centro. Segundo ele, é preciso fazer estudos de viabilidade:
— O Sambódromo é tombado. A região fica próxima a Santa Teresa, que também tem várias restrições. Novas moradias ali podem ser factíveis para uma população de perfil de classe média baixa, mas é preciso estudos que confirmem.
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