Crédito imobiliário rumo à maturidade

em Valor Econômico, 11/outubro

Nos 30 anos do Plano Real, vimos a expansão do mercado de capitais e a decadência da poupança como funding do crédito imobiliário.

Em julho deste ano o Plano Real completou 30 anos. Nestas três décadas, os instrumentos criados pelo plano para combater a inflação levaram ao país não apenas uma moeda forte, mas também geraram as condições que permitiram ao Brasil viver o mais longo período de estabilidade institucional, modernização do Estado e abertura econômica de sua história.

Um dos principais sinais do sucesso do plano é que mesmo em períodos como o atual, no qual lideranças políticas emergem com discursos disruptivos, nenhuma voz se arrisca a colocar em xeque o Real. Ainda que alguns o façam pelas beiradas, vez ou outra tentando flexibilizar a lei de responsabilidade fiscal ou o regime de metas de inflação, não há agente político que se arrisque em questionar seu sucesso, pois certamente estaria sabotando sua própria popularidade.

Outra evidência de sucesso está no mercado imobiliário. Antes, o crédito imobiliário se dava de duas formas. No caso das moradias populares, havia programas governamentais e subsídios, como no caso do finado Banco Nacional da Habitação (BNH). Já o restante do mercado imobiliário se financiava através do Sistema Financeiro da Habitação. Conhecido como SFH, este sistema impunha (e ainda impõe) que 65% dos recursos aplicados na caderneta de poupança dos bancos fosse direcionado para o crédito habitacional.

Como antes do real o mercado de capitais era muito incipiente, havia um ciclo contínuo: a caderneta de poupança oferecia aos pequenos poupadores defesa contra inflação e alta liquidez para suas economias, apesar da baixa rentabilidade. Na outra ponta, os bancos captavam através deste produto e o direcionavam para financiamentos imobiliários de forma compulsória, especialmente para a classe média. Isso era resultado de um mercado de capitais que ainda engatinhava minado por décadas de alta inflação.

Porém, a partir das reformas iniciadas em 1994 este cenário começou a mudar. Apesar das flutuações típicas de um país emergente, nossa inflação recuou, os instrumentos institucionais como a alienação fiduciária foram aperfeiçoados, o brasileiro ganhou mais educação financeira, o mercado de capitais finalmente se desenvolveu, a liquidez aumentou e a poupança foi perdendo espaço na carteira dos investidores.

Um bom exemplo é que mesmo em momentos de alta da Selic a atratividade da poupança caiu. Em 2023 a Selic ultrapassou 13%, e produtos como CDBs, LCIs e o Tesouro Selic passaram a oferecer rendimentos superiores, com o mesmo nível de segurança, graças à cobertura do Fundo Garantidor de Créditos (FGC). Enquanto a poupança rendeu 6,2% ao ano, CDBs e Tesouro Selic chegaram a pagar mais de 13%.

Consequentemente, a redução da atratividade da poupança reduziu a disponibilidade de crédito imobiliário. Não, em função da demanda, o próprio mercado de capitais passou a preencher esta lacuna. Com a necessidade de novas fontes de financiamento, uma das principais soluções que ganhou força foram os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), que securitizam fluxos de pagamentos de contratos imobiliários e permitem que investidores financiem o setor de maneira mais direta. Só em 2023, os CRIs movimentaram cerca de R$ 48 bilhões em novas emissões, enquanto a caderneta de poupança acumulou resgate líquido de R$ 87 bilhões.

Por mais que o estoque atual da poupança fique próximo a R$ 1 trilhão, número longe de ser desprezível, o mercado de capitais já se tornou responsável pela maior fatia do crédito imobiliário em circulação. Ao final de 2023, produtos como CRIs, FIIs e LCIs aumentaram sua participação para 38% (em 2021 eram 24%), enquanto a fração da poupança caiu para 36% (versus 49% em 2021). Os 26% restantes foram provenientes do FGTS.

Ou seja, no aniversário de 30 anos do Plano Real, o setor imobiliário depende cada vez menos da poupança, de subsídios e de crédito direcionado. Isso porque foram criadas as condições para que investidores institucionais e individuais, que buscam alternativas de longo prazo e maior retorno ajustado ao risco, ocupem este espaço, especialmente através de fundos de CRI, que já respondem por cerca de 50% da indústria de FIIs. Isso cria um ciclo virtuoso: os projetos imobiliários ganham fôlego com novas fontes de financiamento, enquanto os investidores têm acesso a produtos mais sofisticados, com o mercado mais flexível e eficiente.

Portanto, a decadência da caderneta de poupança não representa uma ameaça ao setor imobiliário. Pelo contrário, ela evidencia o amadurecimento da economia brasileira e da indústria que finalmente passa a ter no mercado de capitais sua principal fonte de financiamento, a exemplo do que ocorre nas economias desenvolvidas há quase um século.


Ver online: Valor Econômico